quarta-feira, 26 de março de 2008

Cartas a um Jovem Poeta – Rainer Maria Rilke – Tradução de Paulo Rónai

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 1

Paris, 17 de fevereiro de 1903.

Prezadíssimo Senhor,

Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer: a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou. Menos suscetíveis de expressão do que qualquer outra coisa são as obras de arte, - seres misteriosos cuja vida perdura, ao lado da nossa, efêmera.

Depois de feito esse reparo, dir-lhe-ei ainda que seus versos não possuem feição própria, somente acenos discretos e velados de personalidade. É o que sinto com a maior clareza no último poema Minha Alma. Aí, algo de peculiar procura expressão e forma. No belo poema A Leopardi talvez uma espécie de parentesco com esse grande solitário esteja apontando. No entanto as poesias nada tem ainda de próprio e de independente, nem mesmo a última, nem mesmo a dirigida a Leopardi. Sua amável carta que as acompanha não deixou de me explicar certa insuficiência que senti ao ler seus versos sem que a pudesse definir explicitamente. Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-o a mim, depois de o ter perguntado a outras pessoas. Manda-os a periódicos, compara-os com outras poesias e inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem, – usando da licença que me deu de aconselhá-lo – peço que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, – ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende as suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranqüila de sua noite: “sou mesmo forçado a escrever?” Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples “sou”, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão. Aproxime-se, então da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Não escreva poesias de amor. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. Eis por que deve fugir dos motivos gerais para aqueles que a sua própria existência cotidiana lhe oferece; relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existências cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a sim mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Paro o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: Sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar.Se depois desta volta para dentro, deste ensimesmar-se brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons. Nem tão pouco tentará interessar as revistas por esses seus trabalhos, pois há de ver neles sua querida propriedade, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade. Neste caráter de origem está o seu critério, – o único existente. Também, meu prezado senhor, não lhe posso dar outro conselho fora deste: entrar em si e examinar as profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a resposta à questão de saber se deve criar. Aceite-a tal como se lhe apresentar à primeira vista sem procura interpretá-la. Talvez venha a significar que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso aceito o destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito, deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou.

Mas talvez se dê o caso de, após essa descida em si mesmo e em seu âmago solitário, ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. (Basta, como já disse, sentir que se poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo). Mesmo assim, o exame de consciência que lhe peço não terá sido inútil. Sua vida, a partir desse momento, há de encontrar caminhos próprios. Que sejam bons, ricos e largos é o que lhe desejo, muito mais do que lhe posso exprimir.

Que mais lhe devo dizer? Parece-me que tudo foi acentuado segundo convinha. Afinal de contas, queria apenas sugerir-lhe que se deixasse chegar com discrição e gravidade ao término de sua evolução. Nada a poderia perturbar mais do que olhar para fora e aguardar de fora respostas a perguntas a que talvez somente seu sentimento mais íntimo possa responder na hora mais silenciosa.

Foi com alegria eu encontrei em sua carta o nome do professor Horacek; guardo por esse amável sábio uma grande estima e uma gratidão que desafia os anos. Fale-lhe, por favor, neste meu sentimento É bondade dele lembrar-se ainda de mim; e eu sei apreciá-la.

Restituo-lhe ao mesmo tempo os versos que me veio confiar amigavelmente. Agradeço-lhe mais uma vez a grandeza e a cordialidade de sua confiança. Procurei por meio desta resposta sincera, feita o melhor que pude, tornar-me um pouco mais digno dela do que realmente sou, em minha qualidade de estranho.

Com todo o devotamento e toda a simpatia,
Rainer Maria Rilke

Cartas a um jovem poeta – Rainer Maria Rilke – Carta nº 2

Viareggio perto de Pisa (Itália),
5 de abril de 1903.

Perdoe-me, caro e prezado senhor, o lembrar-me só agora, com gratidão, de sua carta de 24 de fevereiro: estive todo este tempo indisposto, embora não doente, mas opresso por uma fraqueza parecida com influenza, e que me tornou incapaz de fazer qualquer coisa. Finalmente, não vendo melhoras, vim para as margens deste mar do sul cuja caridade já ma valeu uma vez . Mas ainda assim o senhor deve tomar estas poucas linhas como se fossem muitas mais.

Deve naturalmente saber que toda carta sua me alegrará. Mostre-se, porém, indulgente com as respostas, que talvez o deixem mais de uma vez com as mãos vazias. Com efeito, em última análise, é precisamente nas coisas mais profundas e importantes que estamos indizivelmente sós, e para que um possa aconselhar ou mesmo ajudar a outro, muito deve acontecer; muitos sucessos favoráveis devem ocorrer; toda uma constelação de eventos se deve reunir para que uma única vez se alcance uma resultado feliz.

Quero falar-lhe hoje apenas de duas coisas. Primeiro, da ironia.

Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para objetos grandes e graves, diante dos quais ela se encolhe desajeitada. Busque o âmago das coisas, aonde ela nunca desce; e ao sentir-se destarte como que à beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade do seu ser. Sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte.

A segunda coisa que lhe queria dizer hoje é a seguinte:

De todos os meus livros, só alguns me são indispensáveis, mas há dois que se encontram entre meus objetos de uso por onde quer que ande. Tenho-os comigo aqui também: a bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Pergunto-me se os conhece. Pode facilmente adquiri-los, sendo que parte deles foi publicada na coleção Reklam em ótima tradução. Adquira o volumezinho Seis novelas de Jens peter Jacobsen e seu romance Niels Lyhne e comece pela primeira novela do primeiro volume, intitulada Mogens. Um mundo se abrirá aos seus olhos: a felicidade, a riqueza, a inconcebível grandeza de um mundo. Viva nesses livros um momento, aprenda neles o que lhe parecer digno de der aprendido, mas, antes de tudo, ame-os. Este amor ser-lhe-á retribuído milhares de vezes e, passará a fazer parte, estou certo, do tecido de seu ser, como uma das fibras mais importantes, no meio das suas experiências, desilusões e alegrias.

Se eu tivesse de confessar com quem aprendi alguma coisa acerca da essência do processo criador, sua profundidade e eternidade, só poderia indicar dois nomes: o de Jacobsen, este poeta máximo, e o de Auguste Rodin, o escultor que não tem igual entre todos os artistas de nossos dias.

Que tudo lhe suceda bem sem seus caminhos.

Seu
Rainer Maria Rilke